Mulher Alada

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Mulher Alada

Olhos marejados, com o peito ardendo em angústia, lá estava eu no 19º andar do prédio em que trabalhava.  Pela janela, meu olhar se fixava nas centenas de pessoas que caminhavam pela calçada. Lá fora o dia estava ensolarado e quente, mas dentro do escritório o clima era gelado, tal qual minha alma se encontrava. Para cada pessoa que eu via lá embaixo, eu tentava imaginar se eram felizes com a profissão escolhida, pois o erro da minha escolha já era um fato comprovado.

Os dias trabalhando em frente à tela daquele computador, montando processos e petições, pareciam não terminar jamais. Eu sentia o peso do mundo apoiando-se sobre as minhas costas, o peso da minha escolha maltratando todo o meu ser, isso por dois longos e intermináveis anos.

Fechei a persiana rapidamente e voltei-me a sentar.  Naquele instante, senti que algo havia mudado dentro de mim. Felizmente, a minha essência não quis se calar e não permitiu que eu continuasse a viver ali, presa naquele mundo que não era meu. Minha alma gritou, pedindo por liberdade! Uma fúria de viver tomou conta de todo o meu ser, como uma onda de calor crescente, que me encorajou a tomar uma das decisões mais importantes da minha vida: eu mudaria de profissão!

A decisão estava tomada, mas havia um longo caminho a percorrer.  Resolvi prestar vestibular novamente, então, para psicologia. Era o que parecia estar mais próximo da minha essência. Eu queria ajudar as pessoas. Sim, queria que elas enxergassem o que há de melhor dentro delas, que lutassem por seus sonhos e que pudessem ser realmente felizes.

Nesse mesmo período, a arte era a minha única válvula de escape. Era o que me mantinha sã e energizada. A arte da dança do ventre, com seus mistérios milenares, fazia parte dos momentos mais prazerosos da minha rotina. Nos momentos em que eu dançava, todo o meu ser se libertava; um novo plano se abria e eu me sentia leve e suave como uma brisa. Mas esses momentos duravam pouco, e logo eu precisava voltar à minha dura realidade.

Passei no vestibular, isso me trouxe uma imensa alegria! Porém, perdi o emprego e outras preocupações começaram a surgir. Comecei a cursar a faculdade no período integral, mas estava muito inquieta, pois, apesar de todo o apoio da família, eu precisava buscar um trabalho que pudesse conciliar com o curso.

Foi, então, que uma amiga me incentivou a dar aulas de dança. A princípio pareceu-me uma ideia absurda, mas aos poucos comecei a perceber que essa era a única possibilidade que a vida me apresentava, naquele momento. Resolvi arriscar-me.

Encarei o desafio e comecei a dar aulas de dança do ventre. E, por incrível que pareça, a dança tomou uma proporção incrível dentro de mim e da minha vida. Com o tempo fui percebendo as inúmeras transformações que ela causava nas praticantes. A dança tinha o poder de curar! Sim, ela atuava sobre o corpo e a mente das mulheres, curando dores antigas e gerando um novo olhar amoroso sobre si mesmo. Nunca, em minha vida, eu havia presenciado transformações tão rápidas e tão eficazes na autoestima de uma mulher.

Após dois anos cursando psicologia, resolvi dedicar-me, exclusivamente, às aulas de dança do ventre. A arte fisgou-me e, dentro dela, eu me sentia viva e plena! E assim, meu mundo girou, girou e girou…

E lá estava eu, no meu primeiro espetáculo. Teatro lotado e uma ansiedade crescente faziam minhas mãos suarem intensamente. Era o primeiro espetáculo de dança do ventre que aconteceria na cidade. A expectativa era imensa, tanto das participantes, quanto do próprio público que, pela primeira vez, assistiria algo do gênero.

Havia setenta e cinco mulheres lindamente produzidas; figurinos brilhantes, olhos maquiados e cabelos encantadores. O cenário era de uma riqueza ímpar: tecidos coloridos formavam uma linda tenda e dez lustres imensos iluminavam o palco. Meu coração parecia não caber dentro do peito. Batia de maneira tão intensa que parecia que eu estava nascendo novamente ali, naquele momento.

Soou o terceiro sinal. O show ia começar. Fiz o sinal da cruz, respirei profundamente e desejei boa sorte a todas as participantes. As cortinas vermelhas se abriram e todos os olhares se voltaram para o centro do palco, onde havia uma pirâmide dourada de quatro metros de altura. O foco de luz central iluminava apenas a pirâmide, o restante do cenário ainda seria uma surpresa. A música começou a tocar e o suspense aumentou. E eu, com meu figurino branco ricamente bordado, com imensas mangas flutuantes que mais pareciam asas, aguardava escondida atrás da pirâmide o momento da minha entrada.

Comecei a subir as escadas e, a cada degrau, eu sentia meu espírito elevar-se aos céus. Eu era pura energia e êxtase! Finalmente, quando cheguei ao topo da pirâmide, abri meus braços e senti uma explosão de sentimentos tomarem conta de mim! Eu havia-me transformado em uma mulher alada, uma verdadeira Deusa Egípcia. A minha fúria de viver, finalmente, assumira sua forma física!

Entre movimentos ondulatórios e tremidos de quadril, eu sentia meu corpo todo arrepiado. O público parecia hipnotizado. Aquele momento ficaria para sempre na minha memória e era, apenas, o início de uma nova era, de um novo ser e de uma nova vida: a minha tão sonhada e verdadeira vida!

Conto publicado no livro de Antologias – Fúria de Viver

Coordenado por Isidro Sousa e publicado pela editora portuguesa Eudito.

Renata Loyolla
Renata Loyolla
Renata Loyolla é bailarina e professora de danças árabes, há 20 anos e coach especializada em desenvolvimento feminino e autoestima.

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